“Boa noite. Você vai ver nesta edição: um motorista de Porsche atropela e mata um motociclista em São Paulo após ter o retrovisor quebrado. Um idoso de 77 anos morre depois de receber uma ‘voadora’ no peito, na frente do neto, em Santos. Emboscada de torcedores do Palmeiras contra cruzeirenses deixa uma vítima fatal e vários feridos na BR-381.”
O que poderia ser uma sequência de manchetes do telejornal da noite é um conjunto de casos reais ocorridos nos últimos meses no Brasil. Basta abrir as redes sociais ou os portais de notícia para deparar com uma barbárie sem fim, insuflada, em outros cantos do mundo, por guerras com milhares de vítimas.
Em suas múltiplas formas, a violência continua reinando e deixando marcas e traumas profundos na sociedade. Suscita, ainda, duras questões: quanto vale uma vida? Onde está a justiça? A humanidade está doente?
O fenômeno, que é global, apresenta algumas particularidades no país, como o baixo índice de solução de assassinatos. O mais recente levantamento do Instituto Sou da Paz aponta que apenas 35% dos 40 mil homicídios dolosos cometidos em 2021 foram esclarecidos — ou seja, um em cada três segue sem desfecho.
Assim, o uso da violência como recurso para “resolver problemas” acaba estimulado pela descrença nas instituições, como a Justiça e a Polícia. E a polarização política e a falta de confiança para buscar ajuda junto aos agentes públicos somam desafios à segurança.
“As pessoas encontram cada vez menos horizontes de realização, com um trabalho que está mais precarizado, num contexto de crise econômica, política e social”, avalia o psicólogo Antonio Euzébios Filho, professor da Universidade de São Paulo (USP). “Daí vem essa percepção de que os indivíduos estão em fúria e intolerantes em vários aspectos”, prossegue o pesquisador.
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A escassez de políticas públicas preventivas, que abre espaço para que condutas agressivas e repressivas se alastrem, também dificulta o combate ao problema. Até mesmo porque as melhoras nos índices parecem tímidas. As mortes violentas intencionais tiveram uma redução de 3% em 2023 em relação ao ano anterior.
Os dados são do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com 46 328 casos, que incluem nessa categoria os homicídios, feminicídios, roubos seguidos de morte, morte de policiais e vítimas decorrentes de intervenção policial. Em termos globais, o indicador no país, de 22,8 mortes por 100 mil habitantes, nos coloca em um patamar quase quatro vezes superior à média mundial, que é de 5,8.
O documento registra, ainda, o crescimento da violência contra as mulheres, da letalidade policial, do assassinato de pessoas LGBTQIA+ e dos crimes de racismo. Inúmeras vezes, além dos gatilhos socioeconômicos e ideológicos, o que alimenta tais ataques é o ódio e o desprezo ao outro. E basta uma fagulha para o barril de pólvora explodir.
Parte do diversificado conjunto de emoções humanas, a raiva costuma dar as caras quando algo nos incomoda, ameaça ou esbarra em valores tidos como importantes, como o senso de justiça. Trata-se de uma resposta natural e um mecanismo de defesa. Ao mesmo tempo que fornece impulsos para agir, ela tem o potencial de nos ajudar na resolução de conflitos.
Para isso, é preciso canalizar a energia de uma forma assertiva. Pode parecer contraditório, mas, se a raiva for bem administrada, pode até render dividendos positivos. O difícil é chegar lá! A Associação Americana de Psicologia (APA) descreve três principais abordagens para lidar com o sentimento.
O primeiro deles é expressar a insatisfação. Contrariando o instinto de responder agressivamente, uma das maneiras mais saudáveis de tratar a questão é manifestar quais são as suas necessidades e os motivos por trás da fúria. A partir disso, ela pode ser gerenciada.
O problema é que, desde pequenos, somos ensinados a silenciar a raiva. Calamos para depois estourar. Essa lacuna abre espaço para o segundo ponto observado pela APA: a supressão.
Quando a cólera é apenas reprimida, sem nenhuma tentativa de processamento, os efeitos podem ser tão nocivos quanto o ato de explodir. As consequências incluem o desenvolvimento de depressão, ansiedade e comportamentos passivos demais ou, ao contrário, agressivos.
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Raiva reprimida faz mal à saúde
Para o corpo, os impactos de engolir a seco envolvem o aumento do estresse e, principalmente, alterações cardiovasculares. O coração sente, literalmente.
Um estudo da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, revelou detalhes sobre a conexão entre a ira e o sistema cardiovascular.
A pesquisa revela que um acesso de fúria de oito minutos prejudica a capacidade de dilatação de veias e artérias, catapultando a possibilidade de que, com o passar do tempo, apareçam danos vinculados ao endurecimento e à obstrução dos tubos que conduzem o sangue.
A condição, chamada pelos médicos de aterosclerose, é o precursor de ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais (AVC). Assim, um rompante de ódio se torna uma ameaça tanto para quem o sente irromper como para outras pessoas que se tornam alvo dele.
A última forma de driblar a raiva envolve encontrar meios para se acalmar, o que exige controlar não apenas o comportamento externo como também as respostas internas.
O melhor caminho para isso parece ser reduzir a excitação física e emocional, de acordo com um estudo conduzido pela Universidade de Ohio, nos EUA. Os pesquisadores analisaram mais de 150 trabalhos envolvendo dados de 10 mil participantes, de diferentes gêneros, etnias e idades.
Em geral, se mostraram eficazes recursos como respiração profunda, relaxamento muscular, atenção plena, meditação e ioga. Por outro lado, não surtiram efeito medidas como desabafar ou bater em um daqueles sacos de areia. O artigo recomenda ainda evitar sair para correr, atividade que mostrou ter impacto contrário ao aquecer o corpo e piorar a situação.
Pelo visto, as “salas da raiva”, ambientes criados para deixar os clientes destruírem objetos a fim de afogar as mágoas, não são tão eficazes assim.
Odeio, logo existo
Deixar a fúria para trás é possível? Essa é a premissa do livro #UmDiaSemOdiar (Citadel), escrito por Davi Lago, pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo (LABÔ), e Marcelo Galuppo, doutor em filosofia do direito e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“O ódio é um sentimento básico do ser humano. Graças a ele, podemos defender a nós mesmos e aqueles a quem amamos, garantindo nossa autopreservação. Mas o sentimento pode se tornar nocivo do ponto de vista da saúde e repulsivo eticamente, quando se transforma em rancor vingativo, que nos aprisiona em todo tipo de sofrimento”, frisa Lago.
Na obra, os autores apresentam a necessidade e as consequências positivas do perdão, além de exercícios fundamentais para exercer essa prática e debelar a raiva contra os outros ou o mundo.
“O principal benefício do perdão é livrar-nos do peso de uma existência presa ao passado. Quem não perdoa permanece ligado ao momento em que foi ofendido. Perceber isso é o primeiro passo”, resume Galuppo.
Nem sempre é fácil, mas a jornada é especialmente proveitosa para a saúde mental. Estudos sugerem que o perdão está associado a níveis mais baixos de depressão, ansiedade e hostilidade, promove redução do abuso de drogas e amplia a autoestima e a satisfação com a vida. Ao mesmo tempo, melhora a qualidade do sono e diminui o risco de ataque cardíaco.
Quem perdoa, de certo modo, também faz um bem a si mesmo.
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O transtorno explosivo intermitente (TEI)
No reverso da moeda, a fúria interna pode se tornar um legítimo problema de saúde. Há dez anos, chegava às telas do cinema a película hispano-argentina Relatos Selvagens. O filme apresenta uma série de histórias cujos personagens atingem o limite da raiva, reagindo de maneira violenta a questões do cotidiano, como briga no trânsito, burocracia e traição amorosa.
Por trás dessa agressividade, que, claro, também foge às telas, pode residir o transtorno explosivo intermitente (TEI). O distúrbio, registrado na lista de doenças psiquiátricas, geralmente começa a se manifestar na infância ou adolescência, podendo afetar qualquer pessoa, mas especialmente homens.
“O diagnóstico requer explosões físicas ou verbais de três a quatro vezes por semana, em média, ou três grandes eventos por ano, como quebra de objetos, ir para a delegacia ou arrebentar o carro de alguém. As reações são inesperadas e desproporcionais e não têm relação com consumo de álcool, drogas ou problemas neurológicos”, resume a psicóloga Liliana Seger, coordenadora de grupo sobre o tema vinculado ao Programa do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas de São Paulo.
A especialista pontua que a condição pode ser entendida como a ausência de freios diante do gatilho da raiva. Enquanto a maior parte da população consegue manejar o impulso, aqueles que convivem com o TEI deixam fluir as emoções que logo se transformam em ação, como avançar com o carro contra alguém no trânsito.
Os episódios não seguem um padrão calculado ou planejado, como explica o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva: “Indivíduos frequentemente relatam uma sensação de perda de controle sobre os comportamentos agressivos. Eles podem se sentir envergonhados ou arrependidos depois, o que não é comum em comportamentos intencionais”.
A melhor forma de prevenir desfechos graves é se abrir ao diagnóstico e ao tratamento adequado. “A terapia cognitivo-comportamental, que tem o maior nível de eficácia, ensina o indivíduo a lidar com a raiva intensa. E existem outras técnicas complementares, como métodos de relaxamento, exercícios para manter a calma, ioga e meditação”, afirma a psiquiatra Laiana Azevedo Quagliato, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Contudo, boa parte das violências a que assistimos no noticiário não pode ser atribuída ao transtorno. São reflexos, com frequência, de uma sociedade doente. Se a raiva é inerente ao ser humano, resta domá-la — pelo bem de si mesmo e dos outros.
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