Saúde na veia Blog “Cresci em uma família marcada por transtorn…

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Ainda hoje, ninguém quer falar sobre isso. Às vezes, desconfiam que se trata de alguma performance – um fingir sofrer por atenção. Às vezes, acham que é falta de alguma coisa em particular que eles mesmos já descobriram o que é – de emprego, de algum deus, de tempo ao ar livre, de correr na esteira.

E no geral, acham que é só desagradável de comentar mesmo. Algo que deveria ser evitado não só como sentimento, mas como assunto. Porque falar sobre é negatividade. Focar no problema, dizem, é parte do problema.

É assim que se constrói o tabu sobre saúde mental. Uma receita que mistura máximas redutivas, achismos superficiais, experiências pessoais convertidas em regras, a famosa pressão por expressar positividade e uma boa dose de preconceito.

É bem verdade que tudo carrega nuances. Sim, existe uma cultura de performance e até de romantização do sofrimento mental, principalmente nas redes sociais. Sim, passear ao ar livre e fazer exercícios físicos pode fazer bem para sua cabeça. E sim, tem gente que reclama demais mesmo, o tempo todo e para todo mundo, desconsiderando que o ouvido dos outros não é um penico.

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Mas sim, é verdade também que o sofrimento mental existe. É verdade que se trata de um problema frequentemente complexo que não vai ser resolvido com alguma receita de bolo. E é verdade também que evitar falar sobre isso não ajuda a ninguém.

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Quebrando o ciclo dos equívocos

Eu cresci em uma família marcada por transtornos mentais que foram negligenciados durante tempo demais. Na minha linhagem, teríamos todos sofrido muito menos se fossem mais normalizadas a busca por ajuda e as conversas sobre isso.

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Meu avô materno se transformou completamente quando foi fazer terapia – virou outra pessoa, mais feliz e realizada, e conseguiu se rever com uma vida de frustrações e traumas. Mas fez isso só lá para depois dos 50 anos, o que lhe garantiu pouco mais de uma década cuidando de si antes de falecer.

Minha mãe, que é bipolar, precisou ter crises das mais absurdas até que recebesse um diagnóstico e um tratamento apropriado. E minha avó, com depressão, teve muitas crises depressivas profundas antes de buscar a terapia e a psiquiatria.

Se tivessem recebido ambas as coisas mais cedo, ao invés da leitura de seus comportamentos erráticos numa perspectiva puramente moralizante, certamente as duas teriam tido vidas muito mais felizes.

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Eu mesmo, que cresci num ambiente caótico, marcado por essas questões familiares todas, só fui procurar terapia com 19 anos. Antes, passei anos usando daquela distinção comum nas ideias conservadoras dos brasileiros: se eu não era maluco como eram meus parentes, se eu era o único normal, então não tinha motivo para buscar um auxílio desse tipo.

+Leia também: Quais são os principais tipos de psicoterapia?

Ter priorizado minha saúde mental aos 19, mesmo que ainda tardio, me deu um diferencial e uma vantagem em relação ao resto da minha família. Consegui notar e começar a corrigir diversos dos meus comportamentos problemáticos ainda na juventude, o que me evitou dores de cabeça lá na frente.

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Eu certamente seria outra pessoa – mais infeliz e sozinha, marcada inclusive por comportamentos destrutivos de uma performance problemática de masculinidade distorcida – não fosse esse movimento que fiz no final da adolescência.

Não teria casado, não teria aguentado os perrengues da minha atribulada vida adulta, teria abusado de substâncias a pontos perigosos e teria dificuldades para lidar com as frustrações e desafios do cotidiano, de pagar boletos a lidar com clientes desagradáveis.

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A conscientização pela fala

A fala é importante para os processos terapêuticos em pelo menos duas escalas. Do consultório para dentro, é por ela que se dá a tal cura pela fala, na qual articular nossos dilemas e percepções muitas vezes nos ajuda a reformulá-los de maneiras mais produtivas.

É uma frequente revisão discursiva daquilo que somos e, mais ainda, daquilo que acreditamos ter potencial para vir a ser. Mas essa fala é aquela já mais conhecida, então queria focar na outra. A fala do consultório para fora é aquela que viabiliza a busca por auxílio terapêutico.

É também um avanço social e cultural que aos 19 anos eu tenha procurado terapia, algo que certamente teria sido mais difícil para minha mãe fazer no final dos anos 80, em plena ditadura militar, e que seria mais difícil ainda para meus avós quando tiveram 19 anos lá no começo dos anos 70.

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Se eu tiver um filho, espero que ele não acredite nunca em coisas como “psicólogo é coisa de maluco” e que, se ele sentir que precisa, vá cuidar de sua saúde mental o quanto antes.

Mas isso não vai acontecer numa ilha. Normalizar e expandir as discussões sobre saúde mental, desconstruir os tabus a respeito, democratizar o acesso a tratamentos adequados…

Essa conscientização pela fala depende de um movimento cultural e coletivo, de um esforço para trazer questões mentais para a pauta com as nuances que elas merecem, sem simplificar o que é complexo e nem suavizar o que é grave.

*Rodrigo Goldacker é escritor, trabalha como redator há sete anos e é Mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero. É autor do recém-lançado Eu Só Existo às Terças-Feiras

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