Em uma era em que ciência e ética deveriam caminhar juntas, clínicas e empresas oferecem implantes hormonais manipulados para uma suposta “otimização hormonal”.
Apesar da recente proibição da Anvisa – medida que deveria ter colocado um fim nas prescrições de implantes –, práticas questionáveis continuam sendo defendidas com alegações de sólidas bases científicas. Esses “chips” são promovidos como solução para fadiga, libido, menopausa, ganho muscular, potência física e sintomas emocionais.
Se questionados sobre o motivo de sua defesa, os prescritores respondem com termos como pioneirismo e revolução. Mas quais seriam as bases dessas afirmações?
Um argumento recorrente é que no Reino Unido, o sistema de saúde NHS oferece o tratamento gratuitamente. Na verdade, o NHS não aprova implantes hormonais. Médicos privados podem, sim, importar esses produtos, mas com altos custos e acesso restrito. Nos Estados Unidos, há um único implante hormonal aprovado pela FDA: de testosterona, indicado apenas para homens com níveis baixos.
Se o objetivo era legitimar os implantes manipulados por respaldo internacional, esse argumento é nulo.
Outro argumento usado é que mulheres em menopausa ou com endometriose necessitam dessas terapias, apelando ao medo de desassistência. Há sim pacientes que melhoram com implantes, mas para essas condições existem terapias hormonais aprovadas, com perfis de segurança conhecidos.
Implantes manipulados muitas vezes incluem uma mistura de substâncias como testosterona, gestrinona, estrogênios, ocitocina (prometida como o hormônio da felicidade), sildenafila, metformina, NADH, anastrozol e oxandrolona. A combinação imprevisível de tantos compostos, sem qualquer estudo, representa um grave risco à saúde.
As “evidências” favoráveis aos implantes
Dois artigos servem como “bíblias” para os vendedores de implantes. O primeiro, Breast Cancer Incidence Reduction in Women Treated with Subcutaneous Testosterone: Testosterone Therapy and Breast Cancer Incidence Study, de Gary Donovitz e Mandy Cotten, argumenta que o uso de testosterona e estradiol em implantes reduz a incidência de câncer de mama.
No entanto, o estudo não possui grupo controle nem randomização, e os dados são retrospectivos, baseados no relato das pacientes, com alto risco de subnotificação e interpretação distorcida. Exames de imagem e dados clínicos consistentes seriam essenciais, mas foram ignorados.
O segundo artigo, Low Complication Rates of Testosterone and Estradiol Implants for Androgen and Estrogen Replacement Therapy in Over 1 Million Procedures, também de Donovitz, afirma que a aplicação de testosterona e estradiol em mais de um milhão de procedimentos resultou em poucas complicações.
O estudo, porém, é retrospectivo e depende de dados autorreportados por profissionais certificados pela BioTE Medical, empresa fundada pelo próprio Donovitz. Esse conflito de interesse é suficiente para desconsiderar as conclusões do estudo em uma análise séria e imparcial.
A Anvisa agiu corretamente ao suspender, mesmo que tardiamente, essa prática. Qualquer pressão para reversão é irresponsável. As complicações continuam ocorrendo em números alarmantes e quem tenta reverter essa medida deve assumir essa conta.
A defesa da autonomia médica precisa respeitar o princípio de não maleficência. A ciência não admite atalhos e a saúde não deve ser comercializada como um produto milagroso e usada como slogan de marketing sem compromisso com a vida.
*Clayton Macedo, endocrinologista da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Hospital Israelita Albert Einstein
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