“O que você disse? Pode repetir, por favor? Ah, não foi isso que eu tinha entendido.” A dificuldade para compreender conversas e até simples recados é um dos primeiros sinais de que há algo de errado com a audição.
Via de regra, a principal suspeita e responsável pela confusão é a perda auditiva. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 1,5 bilhão de pessoas convivem com o déficit em algum grau. Para flagrar esse declínio, o recomendado é fazer exames de audiometria, que são testes capazes de determinar com precisão o tamanho do prejuízo e, assim, orientar o melhor tratamento.
Há, no entanto, quem passe por esses exames sem apresentar perda auditiva alguma e, ainda assim, tenha dificuldade para diferenciar sons, identificar de onde eles vêm ou mesmo memorizar aquilo que foi dito. A fisioterapeuta Marcia Cintra, de 64 anos, conviveu com esses obstáculos a maior parte da vida.
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“Desde pequena, tive problemas para reconhecer alguns sons e decorar a matéria da escola”, lembra a profissional, que mora na capital paulista. Já adulta, facilmente sentia-se sobrecarregada em lugares muito barulhentos. “Quando ia a algum bar, não conseguia discernir o som da conversa do ruído do ambiente. Ou eu me desligava do papo ou ficava muito irritada”, conta.
Tudo começou a melhorar há nove anos, quando todas aquelas dificuldades que Marcia sentia finalmente ganharam um nome. Ao procurar uma fonoaudióloga, ficou claro que o entrave não tinha a ver com o que era captado pelos ouvidos — eles estavam em perfeito estado.
A questão estava em como o cérebro da fisioterapeuta processava todos aqueles sons que entravam por suas orelhas e como eles eram decodificados no cérebro. Foi assim que Marcia recebeu o diagnóstico de transtorno do processamento auditivo central (TPAC), uma condição bastante subdiagnosticada que pode transformar a comunicação de qualquer pessoa — da infância à velhice — em um telefone sem fio.
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Entendendo nossa audição
Apesar de as nossas orelhas levarem o crédito pela audição, há muitas outras estruturas envolvidas na tarefa de pescar e entender os sons que nos rodeiam. “O nosso sistema auditivo é dividido em duas partes: a periférica e a central”, introduz a fonoaudióloga Maria Francisca Colella dos Santos, presidente da Academia Brasileira de Audiologia (ABA).
Na primeira parte do sistema, temos os ouvidos. Os sons alcançam as orelhas e passam pelo canal auditivo até chegarem ao ouvido médio. Lá fica o tímpano, membrana que vibra conforme é atingida pelos barulhos, e um trio de pequenos ossos que ampliam esses sons na cabeça.
Mais à frente, as ondas sonoras chegam ao ouvido interno. Nesse setor está a cóclea, um canal em forma de caracol. Ela tem cerca de 20 mil células capazes de transformar toda essa sinfonia em impulsos nervosos, que, então, são enviados ao cérebro. Muitas vezes, as investigações de problemas auditivos param por aí. Mas o que especialistas estão tentando mostrar é que vale a pena avaliar também como essas informações são compreendidas pelo nosso cérebro.
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Ou seja, é preciso checar como está o sistema auditivo central — a segunda, e importante, parte do trajeto. “Ele é o responsável pelo processamento auditivo, a forma como os sons são interpretados por nós, o que inclui desde identificar uma mensagem útil em meio a uma situação ruidosa até presumir a origem e a localização de um barulho qualquer”, explica Maria Francisca, que também é professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Os impulsos nervosos produzidos na cóclea são transmitidos ao tronco cerebral, que os repassa ao córtex auditivo, complexo onde a maior parte da decodificação acontece. É lá que o som será interpretado até que se torne inteligível.
“Além dessa região especializada, outras áreas cerebrais também são ativadas para processar os barulhos, como as responsáveis pela memória e pela semântica”, expõe Sthella Zanchetta, professora de fonoaudiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). O sistema é tão complexo que, não raro, falhas ocorrem ao ensaiar esse concerto.
Mais comum do que se imagina
O caso de Márcia está longe de ser isolado. Estudos calculam que até 10% das crianças enfrentem dificuldades para interpretar os sons. Segundo estimativas da Associação Americana de Fala, Linguagem e Audição (Asha, na sigla em inglês), quase 20% da população têm problemas no desenvolvimento dessa habilidade. A prevalência entre adultos varia por faixa etária e aumenta conforme envelhecemos.
“Com o avanço da idade, temos que redobrar a atenção dada à audição, pois a perda auditiva e outros transtornos se tornam mais prevalentes e podem acarretar prejuízos que vão desde a falta de socialização até um maior risco de demência”, avisa o médico Marco Túlio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
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Pessoas que, ao longo da vida, sofrem com crises mais frequentes de otite (infecção de ouvido) ou apresentam algum transtorno de fala, aprendizado e comportamento (como dislexia ou transtorno do déficit de atenção com hiperatividade) correm maior risco de desenvolver percalços no processamento auditivo. Felizmente, já há protocolos aprovados para detectá-lo e tratá-lo.
Reconhecendo os sinais
O profissional que investiga, diagnostica e trata o transtorno do processamento auditivo central é o fonoaudiólogo. Portanto, os médicos (pediatras, geriatras, otorrinos…) que, após as consultas de rotina, suspeitarem de algo estranho devem encaminhar o paciente a um fono com especialização na área.
As avaliações regulares de audição também ajudam a colher pistas que podem ser mais bem elucidadas depois. “Hoje, poucas pessoas estão tratando esse transtorno tão comum. É preciso informar a população de que a condição existe e de que há formas de exercitar o cérebro para que ele processe os sons de forma adequada”, afirma Simone Capellini, professora titular de fonoaudiologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Marília.
O rastreamento de casos ainda não é amplamente difundido, mas algumas cidades já têm iniciativas que viabilizam uma triagem na infância. É o caso de Campo Grande (MS), que, em março, aprovou a Política de Diagnóstico e Tratamento do Transtorno do Processamento Auditivo Central. A lei visa garantir o acesso ao tratamento da condição na rede pública e o direito à adaptação do ensino.
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A falta de inclusão tem sido um dos maiores desafios encontrados por Lais Albuquerque, estudante de 11 anos que vive em Jacareí, no interior de São Paulo. Desde os 3, a menina apresenta dificuldades relacionadas a falta de atenção e erros de fala.
Diagnosticada com TDAH, a mãe Anelize Albuquerque acreditava que o déficit de foco, por si, não explicava todo o quadro da filha. “Quando descobrimos o transtorno do processamento auditivo, tudo passou a fazer mais sentido”.
Há solução!
Com o apoio de profissionais capacitados e estratégias adequadas, crianças e adultos podem superar as dificuldades impostas. É a mensagem que a poetisa americana Amanda Gorman, de 26 anos, deixa para quem tem a condição.
Diagnosticada na infância, a artista tinha dificuldade para distinguir e pronunciar alguns sons, mas, com o devido treinamento, conseguiu superar essas barreiras, chegando a se formar em sociologia na prestigiada Universidade Harvard. Em 2021, tornou-se a mais jovem poetisa a se apresentar na posse de um presidente dos Estados Unidos — ela declamou o poema The Hill We Climb (“A colina que subimos”) para Joe Biden.
Para contornar os desafios da condição, não há pílula que resolva. O jeito é treinar, treinar e treinar. “Apostamos na plasticidade cerebral para aprimorar as habilidades auditivas dos pacientes”, afirma Ingrid Gielow, fonoaudióloga e CEO da ProBrain, empresa que cria soluções digitais para problemas de fala e escuta.
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Desde a década de 1990, a especialista tem se dedicado ao desenvolvimento de atividades que ajudem pessoas com déficits de processamento auditivo a desenvolver capacidades como se comunicar em ambientes ruidosos, aumentar o foco e a retenção de informações e até vencer as limitações de aprender um novo idioma.
Sua proposta é levar o treinamento auditivo para o dia a dia do paciente, muito além dos exercícios em consultório. Como? Por meio de programas e jogos acessados pelo computador ou celular. “Ter ferramentas que nos permitem praticar e, aos poucos, conquistar habilidades tão básicas melhora até a nossa autoestima”, diz Marcia, que, até hoje, faz exercícios online quando sente que precisa refinar alguma competência.
Com o treino e o tempo, os ouvidos e o cérebro se alinham — e chega daquele telefone sem fio!
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